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OS SETE SABERES NECESSÁRIOS À EDUCAÇÃO DO FUTURO


OS SETE SABERES NECESSÁRIOS À EDUCAÇÃO DO FUTURO

Edgar Morin


            O presente trabalho refere-se a um relatório da Unesco em que foram estabelecidos os quatro pilares da educação contemporânea: aprender a ser, a fazer, a viver juntos e a conhecer. Isto só pode ser possível se for uma educação integral do ser humano. Em consequência desta diretiva, a Unesco solicitou a Edgar Morin que expusesse sua visão sobre a educação do futuro.
            Este texto não pretende ser uma norma fechada, que deva ser seguida por todos os educadores dos países ditos democráticos. Antes, ele constitui-se de uma proposta, aberta, sujeito a alterações e a críticas, para tornar-se viável.
            O texto não pretende ser um paradigma para a educação do século XXI, mas sobretudo, uma opção a seguir, ou melhor, um caminho a percorrer.

 CAPÍTULO I – AS CEGUEIRAS DO CONHECIMENTO: O ERRO E A ILUSÃO

            A transmissão de conhecimento é um objetivo da educação. Porém, ela é cega quanto ao significado do conhecimento humano, bem como suas dificuldades e propensão ao erro e à ilusão. A educação não se preocupa em conhecer o conhecimento, que é uma das formas de se prevenir quanto ao erro e à ilusão. A educação deve mostrar que não há conhecimento que não esteja ameaçado pelo erro e pela ilusão. A educação do futuro deve enfrentar o problema da dupla face do erro e da ilusão: o maior erro seria subestimar o problema do erro e a maior ilusão seria subestimar o problema da ilusão. Existe o perigo do erro em qualquer transmissão de informação, em qualquer comunicação de mensagem. Todas as percepções são traduções e reconstruções cerebrais com base em estímulos ou sinais captados e codificados pelos sentidos. Daí resultam os erros de percepção. Ao erro de percepção acrescenta-se o erro intelectual. O conhecimento em forma de palavra, ideia, teoria, é resultado de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento e está sujeito ao erro, pois comporta a interpretação, levando ao risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão do mundo. A projeção de nossos medos ou desejos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções multiplicam os riscos de erro. A inteligência é inseparável do mundo da afetividade, que por sua vez estimula a pesquisa filosófica ou científica. A faculdade de raciocinar pode ser diminuída pela falta de emoção; ao enfraquecimento da capacidade de reagir emocionalmente pode estar na raiz de comportamentos irracionais.
            O desenvolvimento do conhecimento científico pode detectar os erros e lutar contra eles. Entretanto, os paradigmas que controlam a ciência podem desenvolver ilusões. Portanto, a educação deve se dedicar à identificação da origem de erros, ilusões e cegueiras.

Os erros mentais
            Nenhum dispositivo cerebral permite distinguir a alucinação da percepção, o imaginário do real, o subjetivo do objetivo. A importância da fantasia e do imaginário no ser humano é inimaginável; dado que as vias de entrada e de saída do sistema neurocerebral, que colocam o organismo em conexão com o mundo exterior representam apenas 2% do conjunto, enquanto 98% se referem ao funcionamento interno, constituindo-se num mundo psíquico praticamente independente.
            Cada mente é dotada também de potencial de mentira para si próprio, que é fonte permanente de erros e ilusões. O egocentrismo, a necessidade de autojustificativa, a tendência a projetar sobre o outro a causa do mal fazem com que cada um minta para si próprio, sem que note que ele mesmo é autor da mentira.
            A memória é também fonte de inúmeros erros. Nossa mente, inconscientemente, tende a selecionar as lembranças que nos convêm e a recalcar, ou mesmo apagar, aquelas desfavoráveis. Tende a deformar as recordações. Assim, a memória, fonte insubstituível de verdade, pode ela própria estar sujeita aos erros e ilusões.

Os erros intelectuais
            Nossos sistemas de ideias (teorias, doutrinas, ideologias) estão não apenas sujeitos ao erro e a ilusões, mas também protegem-nos. Ele resiste à informação que não lhe convém ou que não pode assimilar.

Os erros da razão
            A racionalidade é corretiva, é ela que permite a distinção entre vigília e sonho, imaginário e real, subjetivo e objetivo. Ela é a melhor proteção contra o erro e a ilusão. Existe a racionalidade construtiva, que permanece aberta ao que a contesta para evitar que se torne doutrina e se converta em racionalização; há também a racionalidade crítica exercida particularmente sobre os erros e ilusões das crenças, doutrinas e teorias. Mas, a racionalidade traz em seu seio a possibilidade de erro e ilusão quando se transforma em racionalização, que é fechado, quando se crê racional porque constitui um sistema lógico perfeito e nega-se à contestação de argumento e à verificação empírica.
            A verdadeira racionalidade, aberta por natureza, dialoga com o real, conhece os limites da lógica, do determinismo e do mecanicismo. Ela sabe que a mente humana comporta mistério. Ela negocia com a irracionalidade. Ela não é só crítica, mas autocrítica.
            Nem todos são dotados de racionalidade. Nem mesmo os sábios. Há pessoas que são racionais em sua área de competência, mas irracionais em outros aspectos. Nos tornamos racionais quando reconhecemos a racionalização até em nossa racionalidade e reconhecemos os próprios mitos. Por isso, a necessidade de reconhecer na educação do futuro um princípio de incerteza racional: a racionalidade corre risco, se não mantiver autocrítica, de cair na ilusão racionalizadora.

As cegueiras paradigmáticas
            Os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles. O paradigma é inconsciente, mas irriga o pensamento consciente, controla-º Em resumo, o paradigma instaura relações primordiais que constituem axioma,s determina conceitos. Deve-se evocar aqui o paradigma formulado por Descartes e imposto pela história européia a partir do século XVII. O paradigma cartesiano separa o sujeito e o objeto. Ele determina conceitos soberanos e prescreve a relação lógica: a disjunção. Ele determina dupla visão do mundo. Assim, pode ao mesmo tempo elucidar e cegar. É no seu seio que se esconde o problema-chave do jogo da verdade e do erro.
O Imprinting e a Normalização
            Ao determinismo de paradigmas associa-se o determinismo de convicções e crenças, que, quando reinam em uma sociedade, impõem a todos e a cada um a força imperativa do sagrado, a força normalizadora do dogma, a força proibitiva do tabu. O poder imperativo e proibitivo conjunto dos paradigmas, das crenças oficiais, das doutrinas reinantes e das verdades estabelecidas determina os estereótipos cognitivos e faz reinar em toda parte os conformismos cognitivos e intelectuais, que encarceram o conhecimento no multideterminismo de imperativos, normas, proibições, rigidezes e bloqueios. Há o imprinting cultural (marca imposta pelas primeiras experiências culturais: familiar, escolar, universitária ou profissional) e a normalização que elimina o que poderia contestá-lo. Assim, a seleção sociológica e cultural das idéias raramente obedece à sua verdade.

A NOOLOGIA: POSSESSÃO
            As crenças e as idéias são seres mentais que têm vida e poder. Desde o início da humanidade, existe a noção de noosfera (esfera das coisas do espírito) com seus mitos, deuses e crenças que levou o homem a delírios e massacres. A noosfera está em nós e nós nela. Os mitos tomaram forma com base nas fantasias formadas por nossos sonhos e imaginação. Mitos e ideais voltaram-se sobre nós e deram-nos emoção. Os homens possuídos são capazes de matar ou morrer por um deus, por uma idéia. As sociedades domesticam os indivíduos por meio de mitos e idéias que, por sua vez, domesticam as sociedades e os indivíduos. É difícil distinguir o momento da separação e oposição entre a Idealidade (modo de existência necessário à Idéia para traduzir o real), e o Idealismo (possessão do real pela idéia); racionalidade (dispositivo de diálogo entre a idéia e o real) e a racionalização (que impede esse diálogo), pois todos têm a mesma origem. Entretanto, são as idéias que nos permitem conceber as carências e os perigos da idéia, que é um paradoxo: devemos manter uma luta crucial contra as idéias, mas somente podemos faze-lo com a ajuda de idéias.

O INESPERADO    
            Quando o inesperado se manifesta, é preciso ser capaz de rever nossas teorias e idéias, em vez de deixar o novo entrar à força na teoria incapaz de recebe-lo.

A INCERTEZA DO CONHECIMENTO
            Na educação ocorrem grandes interrogações sobre nossas possibilidades de conhecer. Por em prática essas interrogações constitui o oxigênio de qualquer proposta de conhecimento. O conhecimento do conhecimento deve ser, para a educação, um princípio e uma necessidade permanentes. Na busca da verdade, as atividades auto-observadoras devem ser inseparáveis das atividades observadoras, as autocríticas, inseparáveis das críticas, a reflexão da objetivação. Devemos tentar jogar com as duplas possessões, a das idéias por nossa mente, a de nossa mente pelas idéias, para alcançar formas de convivivbilidade. Entretanto, devemos estar atentos para evitar idealismo e racionalização. Necessitamos de negociação e controle mútuo entre mente e idéias, que desenvolva teorias abertas, críticas e autocríticas, racionais. Precisamos encontrar metapontos de vista sobre a noosfera, que só podem ocorrer com a ajuda de idéias complexas. Enfim, necessitamos de um paradigma que permita o conhecimento do complexo.

CAPÍTULO II – OS PRINCÍPIOS DO CONHECIMENTO PERTINENTE
Da Pertinência no conhecimento
            A era planetária necessita situar tudo no contexto e no complexo planetário. Como conceber o Contexto, o Global, o Multidimensional, o Complexo? A esse problema universal confronta-se a educação do futuro, pois existe inadequação entre os saberes desunidos e as realidades multidisciplinares, transnacionais, globais. Nessa inadequação torna-se invisível o contexto, o global, o multidimensional, o complexo., É preciso torna-los evidentes.
O Contexto
            O conhecimento das informações ou dados isolados é insuficiente. É preciso situa-las no seu contexto para que adquiram sentido. A contextualização é condição essencial da eficácia do funcionamento cognitivo.

O Global      
            O global é mais que o contexto é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional. O todo tem qualidades que não são encontradas nas partes, se estas estiverem isoladas umas das outras, e certas qualidades das partes podem ser inibidas pelas restrições provenientes do todo. É preciso recompor o todo para conhecer as partes. Em todos os seres vivos existe a presença do todo no interior das partes. Dessa forma, assim como cada ponto singular de um holograma contém a totalidade da informação do que representa.
O multidimensional
            O ser humano é multidimensional: é ao mesmo tempo biológico, psíquico, social, afetivo e racional. Da mesma forma, a sociedade comporta dimensões históricas, econômicas, sociológicas religiosa...  O conhecimento pertinente deve reconhecer que não se pode separar as partes do todo, nem uma das outras.

O Complexo
            A complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. Nossa era planetária nos confronta com os desafios da complexidade. A educação deve promover ainteligência geral apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global.

A INTELIGÊNCIA GERAL
            O conhecimento, ao buscar construir-se com referência ao contexto e ao global, deve mobilizar o que o conhecedor sabe do mundo. A educação deve favorecer a aptidão da mente para formular e resolver problemas essenciais e, de forma correlata, estimular o uso total da inteligência geral. Este uso pede o livre exercício da curiosidade, que com freqüência a instrução extingue e que se trata de estimular ou despertar, superando as antinomias e identificando a falsa racionalidade.

A antinomia
            Houve progressos nas especializações disciplinares, mas estes estão dispersos. A especialização fragmenta os contextos, as globalidades e as complexidades. Os sistemas de ensino provocam a disjunção entre as humanidades e as ciências, e das ciências em disciplinas hiperespecializadas, fechadas em si mesmas.            As mentes formadas pelas disciplinas perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes e integrá-los em seus conjuntos naturais. O enfraquecimento da percepção global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade e da solidariedade.

OS PROBLEMAS ESSENCIAIS
Disjunção e especialização fechada.
            A hiperespecialização impede a percepção do global e do essencial, bem como impede de tratar corretamente problemas particulares que só podem ser propostos e pensados em seu contexto.

Redução e disjunção
            Até meados do século XX, a maioria das ciências obedecia ao principio da redução, que limitava o conhecimento do todo ao conhecimento de suas partes. O princípio de redução restringiu o complexo ao simples. Aplica às complexidades vivas a lógica mecânica e determinista da máquina artificial Como nossa educação nos ensinou a separar os conhecimentos, o conjunto deles se torna ininteligível. Dessa forma, quanto mais os problemas se tornam planetários, mais eles se tornam impensáveis.

A falsa racionalidade
            O século XX viveu sob o domínio da pseudo-recionaldiade que presumia ser a única racionalidade, mas atrofiou a compreensão, a reflexão e a visão em longo prazo. Sua insuficiência para lidar com os problemas mais graves constituiu um dos mais graves problemas para a humanidade e criou um paradoxo: produziu avanços em todas as áreas do conhecimento científico, mas produziu nova cegueira para os problemas globais. Pois, o parcelamento impede apreender o todo. Não se trata de abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento das totalidades, nem da análise pela síntese, é preciso conjuga-las.

CAPÍTULO III – ENSINAR A CONDIÇÃO HUMANA
            O ser humano é uma unidade complexa, que adquiriu um caráter desintegrado na educação por meio das disciplinas, tendo-se tornado impossível aprender o que significa o ser humano. Assim, a condição deveria ser o objeto essencial de todo o ensino. Isso é possível se reunir e organizar conhecimentos dispersos nas ciências da natureza, nas ciências humanas, há literatura e na filosofia.

ENRAIZAMENTO/DESENRAIZAMENTO DO SER HUMANO
            Estamos simultaneamente dentro e fora da natureza. Encontramo-nos no gigantesco cosmos em expansão. A vida é solar: todos os seus elementos foram forjados em um sol e reunidos em um planeta. Nós, os seres vivos, somos um elemento da diáspora cósmica. Pertencemos ao destino cósmico. Estamos porém, marginalizados: a Terra é o terceiro satélite de um sol errante entre bilhões de estrelas em uma galáxia periférica de um universo em expansão. Somos seres cósmicos e terrestres. Dependemos da biosfera terrestre para viver. A importância da hominização é primordial para a educação. O conceito de homem tem duplo princípio: biofísico e psico-sócio-cultural, um levando ao outro.

O CIRCUITO CÉREBRO/MENTE/CULTURA
            O homem só se realiza como ser humano pela cultura e na cultura. Não há cultura sem cérebro humano, nem mente sem cultura – é uma tríade entre cérebro/mente/cultura, em que cada um é necessário aos demais.

O CIRCUITO RAZÃO/AFETO/PULSÃO
            As relações ente as três instâncias são complementares e antagônicas, gerando conflitos entre elas. Há uma relação instável e rotativa entre estas instâncias. A racionalidade não dispõe de poder supremo, ela é concorrente com as demais instâncias.

O CIRCUITO INDIVÍDUO/SOCIEDADE/ESPECIE
            Os indivíduos são produtos do processo reprodutor da espécie humana, que deve ser realizado por dois indivíduos. Tais interações produzem a sociedade, que testemunha o surgimento da cultura e retroage sobre os indivíduos pela cultura. A livre expressão dos indivíduos constitui nosso propósito ético e político, sem, entretanto, constituírem a finalidade da tríade indivíduos/sociedade/espécie. Todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana.

UNITAS MULTIPLEX: UNIDADE E DIVERSIDADE HUMANA
            A educação deverá ilustrar o princípio unidade/diversidade em todas as esferas. Na esfera individual existe unidade/diversidade genética, cerebral, mental, psicológica, afetiva, intelectual, subjetiva. Na esfera da sociedade, existe a unidade/diversidade das línguas, das organizações sociais e das culturas.
            A cultura é o conjunto dos saberes, fazeres, regras, normas, proibições, estratégias, crenças, idéias, valores, mitos que se transmite de geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e mantém a complexidade psicológica e social. Assim, sempre existe a cultura nas culturas. Ela é aparentemente fechada para salvaguardar sua singularidade, mas é aberta para elementos que vêm de fora.         O ser humano é complexo e traz em si caracteres antagônicos: sapiens/demens (sábio e louco), faber/ludens (trabalhador e lúdico), empiricus/imaginarius (empírico e imaginário), economicus/consumans (econômico e consumista), prosaicus/poeticus (prosaico e poético). Existem, ao mesmo tempo, unidade e dualidade no ser humano; o conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético.
            O ser humano é racional e irracional. A loucura é um problema central do homem e não apenas doença. Isso significa que os progressos da complexidade se fazem ao mesmo tempo, com a loucura humana, apesar dela  e por causa dela.
            A educação deve mostrar o destino multifacetado do humano e da espécie humana, o individual, o social, o histórico, todos entrelaçados e inseparáveis. Isso levaria à tomada de conhecimento e consciência da condição comum a todos os humanos.

CAPITULO IV – ENSINAR A IDENTIDADE TERRENA
             O destino planetário da espécie humana é outra realidade-chave ignorada pela educação. Convém ensinar a história que se inicia com a comunicação entre todos os continentes no século XVI, mostrar a solidariedade, bem como a opressão e dominação que devastaram a humanidade, demonstrando que agora estamos diante de um destino comum.
O planeta exige um pensamento policêntrico, capaz de apontar o universalismo, não abstrato, mas consciente da unidade/diversidade da condição humana.

A ERA PLANETÁRIA
            A história humana começou com a dispersão humana pelos continentes. Não provocou cisão genética, pois todos viemos da mesma espécie e possuímos os mesmos caracteres. Mas levou a diversidade de línguas, culturas, destinos. Com as navegações do século XV até os dias atuais, o mundo torna-se interdependente. Cada ser humano traz em si, sem saber, o planeta inteiro. A mundialização é evidente, subconsciente e onipresente. Ela é unificadora, mas também conflituosa. A unificação mundializante faz-se acompanhar cada vez mais pelo efeito contrário: a balcanização. O século XX não saiu da idade de ferro planetário; mergulhou nela.

O LEGADO DO SÉCULO XX     
            No século XX vemos a aliança entre duas barbáries: a primeira vem dos primeiros tempos e traz a guerra, a segunda vem do âmago da racionalização, que ignora o indivíduo e multiplica o poderio da morte e da servidão técnico-industriais: a AIDS, a possibilidade de extinção global da humanidade, a poluição. Se a modernidade é definida como fé incondicional no progresso, na tecnologia, na ciência, no desenvolvimento econômico, então esta modernidade está morta.

A ESPERANÇA
            Se o gênero humano possui recursos criativos, o século XX legou ao terceiro milênio o embrião da cidadania terrestre. A educação e ao mesmo tempo transmissão do antigo e abertura da mente para receber o novo. O século XX deixou como herança contracorrentes regeneradoras: ecológica, qualitativa, de resistência a vida prosaica puramente utilitária, de resistência a primazia do consumo padronizado, de emancipação em relação à tirania onipresente do dinheiro, de reação ao desencadeamento da violência. Todas essas correntes prometem intensificar-se no século XXX, mas só será possível se houver intertransformação de todos, uma transformação global. As forças da ciência e técnica podem superar as forças da morte e servidão. É a própria mente humana, que pode encontrar uma saída. Por isso, a reforma do pensamento é vital.

A IDENTIDADE E A CONSCIENCIA TERRENA
            A união planetária pede a consciência de que todos pertencemos à Terra. E necessário aprendermos a dividir. Devemos dedicar-nos não só a dominar, mas a compreender. Devemos inscrever em nós uma consciência antropológica, ecológica, cívica terrena e uma consciência espiritual da condição humana.
            De qualquer maneira, a era dos Estados-nações, dotados de poder absoluto está encerrada. O mundo confederado deve ser policêntrico e acêntrico, não apenas política, mas também culturalmente. A unidade, a mestiçagem e a diversidade devem desenvolver-se contra a homogeneização e o fechamento. O imperativo antropológico impõe-se salvar a unidade e a diversidade humanas. Desenvolver identidades concêntricas e plurais: de etnia, de pátria, de comunidade, de civilização, enfim, de cidadãos terrestres. A educação do futuro deverá ensinar a ética da compreensão planetária.

CAPÍTULO V – ENFRENTAR AS INCERTEZAS
            O século XX descobriu a perda do futuro, ou seja, sua imprevisibilidade.As civilizações tradicionais viviam na certeza de um tempo cíclico; a civilização moderna viveu com a certeza do progresso histórico. A tomada de consciência da incerteza histórica acontece hoje com a destruição do mito do progresso. Ele é possível, mas é incerto. A isso se acrescentam todas as incertezas devido à velocidade e à aceleração dos processos complexos e aleatórios de nossa era planetária. O futuro chama-se incerteza.
            A história não constitui uma evolução linear. Conhece períodos de latência e de virulências. A história é um complexo de ordem, desordem e organização. Obedece a determinismos e aos acasos. Ela tem duas faces: civilização e barbárie, criação e destruição, gênese e morte...   Aprendemos no final do século XX que, à visão do universo obediente a uma ordem, é preciso substituir a visão na qual este universo é o jogo e o risco da dialógica entre a ordem, a desordem e a organização.
            O homem precisa aprender a enfrentar a incerteza. È por isso que a educação do futuro deve voltar para as incertezas ligadas ao conhecimento: a incerteza cérebro-mental, a incerteza lógica, a incerteza racional, a incerteza psicológica. O mundo está em crise, ele agoniza. A humanidade é conduzida para uma aventura desconhecida.
            A realidade não é legível. As idéias e teorias traduzem a realidade, mas pode ser de forma errônea. Por isso importa compreender a incerteza do real, saber que há algo possível ainda invisível no real. É preciso saber interpretar a realidade antes de reconhecer onde está o realismo.
            O conhecimento é uma aventura incerta que comporta em si mesma o risco de ilusão e de erro. Embora se encontre alguma certeza, o conhecimento é a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipélagos de certezas.
            A ação é decisão, escolha, mas também aposta. A ecologia da ação deve levar em consideração a complexidade que ela supõe, através do aleatório, do imprevisto. Ela compreende três princípios: o circuito risco/precaução; o circuito fins/meios e o circuito ação/contexto. Toda ação escapa à vontade de seu autor quando entra no jogo das inter-retroações do meio em que intervém.  A ação pode ter três tipos de consequências: o efeito perverso, a inanição da inovação e a colocação das conquistas em perigo.

A IMPREVISIBILIDADE EM LONGO PRAZO
            Os efeitos de uma ação em longo prazo são imprevisíveis. Nenhuma ação está segura de ocorrer no sentido de sua intenção. Há dois meios para enfrentar a incerteza:
-          após a escolha, a consciência da incerteza torna-se consciência de uma aposta. A noção de aposta deve ser generalizada quanto a qualquer fé: a fé em um mundo melhor, na justiça etc.
-          a estratégia deve prevalecer sobre o programa. Se houver modificação das condições externas, bloqueia-se o programa. A a estratégia elabora um cenário de ação que examina as certezas e as incertezas da situação

Tudo que comporta oportunidade comporta risco, e o pensamento deve reconhecer as oportunidades de riscos como os riscos das oportunidades.

CAPITULO VI – ENSINAR A COMPREENSÃO
      A compreensão é meio e fim da comunicação humana. Entretanto, a educação para a compreensão está ausente do ensino. O planeta necessita, em todos os sentidos, de compreensão mútua. O desenvolvimento desta qualidade pede a reforma das mentalidades. Essa deve ser a obra para a educação do futuro. A compreensão mútua entre os seres humanos, para que as relações saiam de seu estado bárbaro de incompreensão. Daí decorre a necessidade de estudar a incompreensão a partir de suas raízes, modalidades e efeitos. Esse estudo é necessário porque enfoca as causas do racismo, da xenofobia e do desprezo.
      Educar para compreender uma disciplina é uma coisa, educar para compreensão humana é outra. O problema da compreensão é duplamente polarizado:
-          o planetário, da compreensão entre os seres humanos;
-          o individual, da compreensão das relações particulares entre próximos.

AS DUAS COMPREENSÕES
            A comunicação não garante compreensão, ela pode trazer inteligibilidade, mas não é suficiente para a compreensão. Há duas formas de compreensão: intelectual ou objetiva e a humana intersubjetiva. A intelectual passa pela inteligibilidade e explicação. Explicar é considerar o que é preciso conhecer como objeto e aplicar-lhe todos os meios objetivos de conhecimento. A explicação necessária para a compreensão intelectual, mas é insuficiente para a compreensão humana. Esta comporta um conhecimento de sujeito a sujeito e inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e de projeção. Sempre intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade.

EDUCAÇÃO PARA OS OBSTÁCULOS À COMPREENSÃO
            A compreensão do sentido das palavras de outro, de suas ideias, de sua visão do mundo está sempre ameaçada por todos os lados:
. existe o ruído que cria o mal-entendido e o não-entendido;
. existe a polissemia de uma noção que, enunciada em um sentido, é entendida de outra forma;
. existe a ignorância  dos ritos e costumes do outro;
. existe a incompreensão dos valores de outra cultura;
. existe a incompreensão dos imperativos éticos próprios a uma cultura;
. existe a impossibilidade de compreender as ideias ou os argumentos de outra visão do mundo;
. existe a impossibilidade de compreensão de uma estrutura mental em relação a outra.

EGOCENTRISMO, ETNOCENTRISMOS E SOCIOCENTRISMO
            A incompreensão de si é fonte importante da incompreensão de outro. Mascaram-se as próprias carências e fraquezas, o que nos torna implacáveis com as carências e fraquezas dos outros. O egocentrismo amplia-se com o afrouxamento da disciplina e das obrigações que anteriormente levavam à renúncia aos desejos individuais, quando se opunham à vontade dos pais ou cônjuges. Hoje, a incompreensão deteriora as relações. O mundo dos intelectuais, escritores ou universitários, é o mais gangrenado sob o efeito da hipertrofia do ego, nutrido pela necessidade de consagração e de glória.
            O etnocentrismo e o sociocentrismo nutrem xenofobias e racismos e podem até despojar o estrangeiro da qualidade de ser humano. Por isso, verdadeira luta contra os racismos se operaria mais contra suas raízes ego-sócio-cêntricas do que contra seus sintomas.

A ÉTICA DA COMPREENSÃO  
            É a arte de viver que nos demanda compreender de modo desinteressado, com grande esforço, pois não pode esperar nenhuma reciprocidade. É compreender a incompreensão, assim estaremos a caminho da humanização das relações humanas. O que favorece a compreensão é:
. o bem pensar
. a introspecção
. a consciência da complexidade humana
. a abertura subjetiva
. a interiorização da tolerância
. compreensão, ética e cultura planetárias

CAPÍTULO VII – A ÉTICA DO GENERO HUMANO
            A concepção do gênero humano comporta a tríade indivíduo/sociedade/espécie. A cultura, no sentido genérico, emerge dessas interações, reúne-as e confere-lhes valor. Assim, essa tríade é inseparável e seus elementos são co-produtores um do outro; cada um é meio e fim dos outros.
A antropo-ética deve ser considerada como a ética da qual emerge a consciência e o espírito humanos. É a base para ensinar a ética do futuro. Supõe a decisão consciente e esclarecida de:
. assumir a condição humana indivíduo/sociedade/espécie na complexidade do ser;
. alcançar a humanidade na consciência pessoal;
. assumir o destino humano em suas antinomias e plenitude.

A ANTROPO-ÉTICA INSTRUI-NOS A ASSUMIR A MISSÃO ANTROPOLÓTGICA DO MILENIO:
. trabalhar para a humanização da humanidade;
. efetuar a dupla pilotagem do planeta: obedecer à vida, guiar a vida;
. alcançar a unidade planetária na diversidade;
. respeitar no outro a diferença e a identidade quanto a si mesmo;
. desenvolver a ética da solidariedade e da compreensão;
. ensinar a ética do gênero humano.
            A antropo-ética compreende a esperança na completude da humanidade, como consciência e cidadania planetária, mas também aposta no incerto. Ela é consciência individual além da individualidade.

O CIRCUITO INDIVIDUO/SOCIEDADE: ENSINAR A DEMOCRACIA
            A democracia favorece a relação rica e complexa entre indivíduo e sociedade. Fundamenta-se no controle da máquina do poder pelos controlados. É a regeneração contínua de uma cadeia complexa e retroativa: os cidadãos produzem a democracia que produz cidadãos.
            A soberania do povo cidadão comporta ao mesmo tempo a autolimitação desta soberania pela obediência a leis e a transferência da soberania aos eleitos. Necessita do consenso da maioria e do respeito às regras democráticas. Mas, necessita de diversidade. A experiência do totalitarismo enfatizou o caráter-chave da democracia: seu elo vitaL com a diversidade. A democracia constitui, um sistema político complexo, no sentido de que vive de pluralidade e antagonismos, permanecendo como comunidade. O desenvolvimento das complexidades políticas, econômicas e sociais nutre os avanços da individualidade. Esta se afirma em seus direitos e adquire liberdades existenciais.
            A democracia une termos antagônicos: consenso/conflito, liberdade/fraternidade, comunidade nacional/antagonismos sociais e ideológicos. Enfim, ela depende das condições que dependem de seu exercício. As democracias do século XXI serão cada vez mais confrontadas ao gigantesco problema decorrente do desenvolvimento da enorme máquina em que ciência, técnica e burocracia estão intimamente associadas. Nessas condições, o cidadão tem o direito de adquirir saber especializado. Quanto mais a política se torna técnica, mais a competência democrática regride. Impõe-se às sociedades reputadas como democráticas a necessidade de regenerar a democracia, enquanto, em grande parte do mundo, se apresenta o problema de gerar democracia. A regeneração democrática supõe a regeneração do civismo, a regeneração do civismo supõe a regeneração da solidariedade e da responsabilidade, ou seja, o desenvolvimento da antropo-ética.

O CIRCUITO INDIVÍDUO/ESPÉCIE: ENSINAR A CIDADANIA TERRESTRE
            A ligação ética do indivíduo à espécie humana foi afirmada desde as civilizações da Antiguidade. Esta antropo-ética foi recoberta por éticas culturais diversas e fechadas, mas não deixou de existir e ressurgir. A partir do século XX, a comunidade de destino terrestre impõe de modo vital a solidariedade.

A HUMANIDADE COMO DESTINO PLANETÁRIO
            A comunidade de destino planetário permite assumir e cumprir esta parte de antropo-ética, que se refere à relação entre indivíduo singular e espécie humana como todo.
            Ela deve empenhar-se para que a espécie humana se desenvolva e com a participação dos indivíduos e das sociedades realize o nascimento da Humanidade como consciência comum e solidariedade planetária do gênero humano.
            A Humanidade deixou de ser uma noção apenas biológica, devido a sua inclusão na biosfera, deixou de ser uma noção sem raízes, pois está enraizada em uma Pátria que é a Terra, deixou de constituir uma noção abstrata, pois é realidade vital, ameaçada de morte, deixou de constituir uma noção ideal, pois tornou-se uma comunidade de destino; a Humanidade é sobretudo uma noção ética: é o que deve ser realizado por todos e em cada um.
            A dominação, a opressão e a barbárie humanas permanecem e agravam-se. Sós e em conjunto com a política do homem, a política de civilização, a reforma do pensamento, a antropo-ética, o verdadeiro humanismo, a consciência da Terra –Pátria reduziriam a ignomínia do mundo.
            Por muito tempo ainda, a expansão e a livre expressão dos indivíduos constituem nosso propósito ético e político do planeta. Isso supõe ao mesmo tempo a permanência integrada dos indivíduos no desenvolvimento mútuo dos termos da tríade individuo/sociedade/espécie. Não conhecemos o caminho do futuro: “o caminho se faz ao andar” (Antonio machado). Porém, acreditamos que uma comunidade planetária organizada seria a missão da Organização das Nações Unidas.

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