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RESUMO; O CONCEITO DE MEDIAÇÃO SEMIÓTICA EM VYGOTSKY E SEU PAPEL NA EXPLICAÇÃO DO PSIQUISMO HUMANO Angel Pino Sirgado


O CONCEITO DE MEDIAÇÃO SEMIÓTICA EM VYGOTSKY E SEU PAPEL NA EXPLICAÇÃO DO PSIQUISMO HUMANO

Angel Pino Sirgado


            Para Vygotsky, “o fato central na nossa psicologia é o fato da mediação”. Ele constitui o “elo epistemológico” dos trabalhos de Vygotsky e de outros autores da corrente sócio-histórica de psicologia. Esta corrente concebe o psiquismo humano como uma construção social, resultado da apropriação, por parte dos indivíduos, das produções culturais da sociedade pela mediação dessa mesma sociedade.
            Neste trabalho, o termo mediação é utilizado para designar a função que os sistemas gerais de sinais desempenham nas relações entre os indivíduos e destes com seu meio. Os processos mediadores multiplicam-se na vida social dos homens, devido à complexidade de suas relações sociais. Os homens criaram instrumentos e sistemas de signos cujo uso lhes permite transformar e conhecer o mundo. A mediação dos sistemas de signos constitui o que denominamos “mediação semiótica”. O objetivo deste trabalho é analisar este conceito à luz dos escritos de Vygotsky.

Da sinalética animal às raízes da semiótica

            Num de seus ensaios sobre o comportamento, K. Lorenz fala da existência nos animais de mecanismo inatos deslanchadores da ação, que lhes permitem reagir de maneira “sensata” aos sinais emitidos por outros animais. Pesquisas etológicas comprovam a existência, no mundo animal, de sistemas sinaléticos altamente especializados na “transmissão de informações”.
            Segundo o especialista a passagem do homem de coletor e predador para caçador representou o abandono do estado de natureza e a entrada para o estado de cultura. A caça requer novas habilidades e conhecimentos. Dessa forma, a caça teria ensinado o homem a sentir, registrar, interpretar e classificar os fatos da natureza por meio das pistas, marcas e indícios. A capacidade de decifrar esses sinais revela a existência no homem de novas formas de inteligência prática.
            Pistas, marcas e indícios distinguem-se dos signos, dos quais são os precursores. Os signos são sinais que remetem ao objeto sinalizado em virtude da relação artificial e variável que o homem estabelece entre eles. Mas decifrar pistas, marcas e indícios constitui uma operação que transcende a interpretação sinalética dos animais, pois implica um processo de análise totalmente estranho ao mundo animal. Trata-se de uma atividade mental que pode ser vista como o elo lógico que liga a sinalética à semiótica.
           

A questão da mediação em Vygotsky

            Para Vygotsky, as funções psíquicas humanas têm sua origem nos processos sociais. Elas são relações sociais interiorizadas. O desenvolvimento psíquico é o resultado da ação da sociedade sobre os indivíduos para integrá-los na rede de relações sociais e culturais que constituem uma formação social, ou seja, a criança para tornar-se um ser humano terá que passar por processos de inter-ação e inter-comunicação sociais que só são possíveis graças a sistemas de mediação altamente complexos, produzidos socialmente. Vygotsky e outros autores consideram que a constituição das funções psicológicas acontece simultaneamente à apropriação do saber e do fazer da sociedade.
            Na perspectiva de Vygotsky e outros autores da corrente sócio-histórica, a idéia de mediação está fundada na teoria marxista da produção. Segundo Marx, o desenvolvimento humano é resultado da atividade do trabalho. Pelo trabalho humano, ao mesmo tempo em que os homens transformam a natureza, eles se transformam, desenvolvendo funções e habilidades. Portanto, implica uma dupla produção: a dos objetos culturais e a do ser humano. Marx desenvolve o conceito de instrumento de trabalho, objeto fabricado para realizar a atividade produtiva, que mostra a capacidade criadora do homem e seu nível de desenvolvimento cultural.
            A análise marxiana do trabalho permite explicar a função mediadora que ele desempenha nas relações dos homens com a natureza e entre si, mas não explica de onde advém essa qualidade mediadora à atividade do trabalho. É o que Vygotsky propõe-se explicar.
            Vygotsky mostra que a passagem da atividade prática dos animais à atividade humana ocorre quando esta é mediada externamente. Surge daí o conceito de “ato instrumental”. Ele fala de dois tipos de mediadores externos: os instrumentos (regulam as ações sobre os objetos), e os signos (regulam as ações sobre o psiquismo das pessoas). Os signos são os mediadores na formação da consciência (experiência das experiências).
            O estudo da linguagem leva-o a fazer da sua aquisição o elemento que transforma as funções elementares, de origem natural, em funções superiores, de origem sociocultural. Isso ocorre quando os signos são incorporados à ação prática. Isto significa que a incorporação da fala (sistema sígnico) à ação prática (simples uso de instrumentos) constitui o limiar que separa a atividade propriamente humana, de natureza simbólica, da atividade prática, própria de crianças na fase pré-verbal ou sensório-motora segundo Piaget. Porém, a duplicidade de funções é problemática, pois, embora a fala dê acesso à ordem simbólica, a criança desde o início é sujeito de ações significantes para o outro, o que a insere no circuito do simbólico.

A questão semiótica em Vygotsky

            Ao reinterpretar o “ato instrumental” com base na função da linguagem, Vygotsky escolheu como “unidade de análise” o significado da palavra, que lhe permite avançar na análise das relações entre pensamento e linguagem, problema semântico (pois é indissociável da palavra), e problema psicológico (enquanto generalização ou conceito, fenômeno do pensamento).
            A função mediadora do significado encontra-se na natureza da linguagem: sistema de signos reversíveis, organizado segundo os princípios de multifuncionalidade, comunicação e generalização. O caráter generalizante do significado das palavras permite as duas funções principais da linguagem que a articulam com o pensamento: a comunicativa e a representativa. Ambas estão interligadas.
            Para Vygotsky, os níveis de generalização do significado das palavras e dos correspondentes níveis de desenvolvimento da interação social está relacionada com dois usos diferentes dos signos lingüísticos: o de função indexical (implica a presença do objeto e sua individualidade) e o de função simbólica (implica a ausência do objeto e sua generalidade). Essas funções relacionam-se com os processos de contextualização/descontextualização. A contextualização confere aos significados das palavras uma significação particularizada, dando-lhe sentido e valor. A descontextualização torna os significados representantes abstratos de totalidades genéricas, expressão da história de cada língua.
            Em Vygotsky temos que a função significativa do significado das palavras varia em razão da sua contextualização e, ainda, que a relação entre os elementos do signo lingüístico não é fixa.
            Vygotsky considera que o sentido predomina sobre o significado da palavra. Para ele, o sentido é a soma dos eventos psicológicos que a palavra evoca na consciência. É um todo fluido onde o significado é uma construção social, de origem convencional e de natureza relativamente estável. As alterações de sentido não afetam a estabilidade do significado. Segundo Vygotsky, as palavras adquirem sentido no contexto do discurso. A variação de contexto implica, portanto, variação de sentido.
            Segundo Bakhtin, a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. A significação real de um enunciado está determinada pela interação de vozes ou perspectivas ideológicas múltiplas, representações de diferentes posições sociais na estrutura da sociedade. Por isso, todo discurso é ideológico e polêmico.

A mediação semiótica: Alcance e perspectivas teóricas

            Peirce afirma que um signo é algo que significa outra coisa sob algum aspecto para alguém. Então, qualquer coisa pode adquirir um valor semiótico. Isso explica a variedade do repertorio sígnico. O sistema de signos lingüísticos faz parte desse repertorio.
            Entretanto, o campo da semiótica não se esgota no sistema de signos lingüísticos. A função da mediação semiótica extrapola o campo da lingüística.
            Outra questão problemática é o alcance sócio-histórico que o conceito de sentido tem nos escritos de Vygotsky. Ao admitir a existência do sentido, ele coloca a questão da significação do próprio significado, afirmando o deslocamento deste em razão dos contextos. O problema nessa discussão é o da referência.
            Ao falar do referente, Vygotsky o faz em termos denotativos. Significado e referente não coincidem necessariamente, permitindo a variação do sentido das palavras.
            À semiótica interessa não como o discurso descreve a realidade, mas como a produz, ou seja, como produz seus referentes internos. A questão do sentido discursivo está ligada à questão das formações imaginárias. Real e imaginário opõem-se na sua representação, a qual é uma formação imaginária. A ilusão reside no desconhecimento das formações imaginárias do discurso.
            A questão do imaginário discursivo está relacionada com a teoria da referência e esta com o problema da transparência do discurso. Segundo Sercovich, um discurso é transparente quando oculta suas próprias condições de produção. Uma formação imaginária é, para ele, o conjunto de discursos predominantemente transparentes operante numa conjuntura determinada. Uma relação imaginária é a relação entre um discurso transparente e um sujeito. As representações produzidas pelas formações imaginárias são constitutivas da subjetividade. É na relação imaginária que opera o ideológico.
            Evidencia-se assim, tanto a natureza do semiótico quanto a sua constituição a partir de e pela realidade sócio-histórica da sociedade, o que confere ao conceito de mediação semiótica uma densidade social e histórica.
            Conclui-se que o conceito de mediação semiótica é um bom instrumento para pensar o psiquismo humano como um processo permanente de produção. Esse conceito revela-nos a origem social das funções psíquicas e a natureza semiótica da atividade psíquica. A capacidade imaginária do ser humano permite-lhe a construção de um universo simbólico que define a especificidade de sua natureza. A entrada nesse universo, pela sua apropriação através dos mecanismos de internalização e pela produção cultural, representa para o recém-nascido a razão de sua existência e a condição para tornar-se humano.

Bibliografia
PINO, Angel. O conceito de mediação em Vygotsky e seu papel na explicação do psiquismo
humano. CADERNOS CEDES, n. 24, p. 32 – 50, 2000.MEDIAÇÃO SEMIÓTICA EM VYGOTSKYMEDIAÇÃO SEMIÓTICA EM VYGOTSKY

Comentários

  1. Oi! Por acaso você tem esse texto? Procurei por tudo e não encontro em lugar nenhum. Queria muito lê-lo! :) Abçs

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  2. ótimo texto, adorei o exemplo do novo estado de cultura pelo desenvolvimento da caça e também a relação da teoria com o marxismo

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