RESUMOS: PROCESSOS CONSTRUTIVOS DA LEITURA E DA ESCRITA O INTELIGÍVEL, O INTERPRETÁVEL E O COMPREENSÍVEL
PROCESSOS CONSTRUTIVOS DA LEITURA E DA
ESCRITA
O INTELIGÍVEL, O INTERPRETÁVEL E O
COMPREENSÍVEL
Eni Orlandi
Introdução
Minhas
discussões a respeito da leitura, enquanto proposta para considerá-la na
perspectiva discursiva, têm objetivos externos e internos.
Um
dos objetivos externos é questionar os processos de produção da leitura junto
aos que trabalham com seu ensino. O objetivo interno é apreender o
funcionamento da compreensão.
A
reflexão sobre o funcionamento discursivo da compreensão tem um retorno que
incide sobre uma questão importante para a análise de discurso: a constituição
dos processos de significação. Quem lê produz sentidos, e o faz em condições
determinadas, cuja especificidade está em serem sócio-históricas.
É
pela reflexão sobre a determinação históricas desses processos que vemos a
leitura como parte constitutiva deles.
Quando
fazemos parte do conjunto dos chamados sujeitos-leitores estamos fazendo parte
de um processo do qual resulta a institucionalização dos sentidos. O cerne da
produção de sentidos está no modo de relação (leitura) entre o dito e o
compreendido.
De
acordo com Voloshinov (1976): “o signo (...) resulta(ndo) de um consenso entre
indivíduos socialmente organizados no curso de um processo de interação”. O
signo pede assim a co-presença de indivíduos (autor/leitor) no quadro das
relações sociais (e não fora delas), no confronto de forças políticas e
ideológicas.
Levar
em conta esses aspectos é uma maneira de reconhecer que a linguagem é um
fenômeno complexo que tem sua especificidade num modo de funcionamento que se
dimensiona no tempo e no espaço das práticas do homem.
Os
sentidos são criados. São construídos em confrontos de relações que são
sócio-historicamente fundadas e permeadas pelas relações de poder com seus
jogos imaginários. Os sentidos, em suma, são produzidos.
O modo de leitura e o sujeito-leitor correspondente
Na
produção da linguagem, o que temos não é transmissão de informação, mas efeitos
de sentido entre locutores (Pêcheux, 1969). Daí decorre o que se pode chamar de
“efeito leitor”.
A
noção de efeito supõe a relação de interlocução na construção de sentidos. São
efeitos da troca de linguagem, que não nascem nem se extinguem no momento em
que se fala.
Os
sentidos são partes de um processo. Realizam-se num contexto mas não se limitam
a ele. Têm historicidade, têm um passado e se projetam num futuro. Esse projeto
significante, ao mesmo tempo em que desgruda o sujeito do imediatismo de uma
relação mecânica com a situação de enunciação, o prende na responsabilidade do
dizer, o de ser autor (leitor) e, logo, o de ser a origem, mas de sua unidade e
coerência.
Para
esclarecer essa prática faremos considerações a respeito das noções de interdiscurso,
memória e de formação discursiva.
O lugar social da leitura: O alocutário, o destinatário, o leitor
À
representação de unidade textual corresponde a unidade da leitura resultante do
efeito-leitor.
Nossa
tarefa nesse presente estudo é expor o modo de constituição desse efeito e a
forma como atuam esses princípios de coerência.
Assim,
consideramos na recepção três funções: o alocutário, o destinatário e o leitor.
O
locutor é aquele que se representa como “eu” no discurso; o enunciador
corresponde às perspectivas com que esse “eu” se apresenta; e o autor é o
principio de agrupamento do discurso, unidade e origem das suas significações.
O autor é a função que o “eu” assume enquanto produtor de linguagem.
O
alocutário é o “tu” a quem o “eu” do locutor se dirige; o destinatário é o
“outro” da perspectiva do enunciador, ou seja, uma perspectiva de leitor
construída pelo enunciador. O leitor é aquele que se assume como tal na prática
da leitura.
O
efeito-leitor é determinado historicamente pela relação do sujeito com a ordem
social. É do leitor que se cobra um modo de leitura. Ele terá sua identidade de
leitura configurada pelo seu lugar social e é em relação a esse “seu” lugar que
se define a “sua” leitura. O efeito-leitor é relativo à posição do sujeito.
Das três
funções, a do leitor é a que está mais determinada pelo social.
Individualidade e individuação: as duas faces da
subjetividade
O sujeito do discurso é
constituído pela interpelação ideológica e representa uma “forma-sujeito”
historicamente determinada.
Essa forma-sujeito constituída
pelas relações de uma formação social como a nossa é a de um sujeito ao qual se
atribui autonomia, ao mesmo tempo em que se considera que ele é determinado
pela sua relação como a exterioridade. Há uma dupla determinação: uma
determinação interna pelo sujeito e uma determinação externa do sujeito. O
sujeito de nossa formação social está amarrado à individualidade. Esse sujeito
leitor acolhe ao mesmo tempo a idéia de individualismo e o mecanismo coercitivo
de individuação imposto pela instituição que produz sentidos ao ler.
A relação entre o contexto de enunciação e o contexto
histórico
Há duas
instâncias de constituição do discurso, de contexto de situação em sentido
estrito (ou circunstância de enunciação) e em sentido amplo (ou contexto
sócio-histórico).
No
interior do domínio do contexto sócio-histórico é que podemos considerar a
instancia do enunciado, onde se produz uma forma indefinidamente repetível, mas
que pode dar lugar a enunciações as mais diversas e dispersas.
A
instância do enunciado é a do “repetível”, a que podemos chamar de
interdiscurso. Segundo Courtine (1982) é no espaço do interdiscurso que se
constituiria a exterioridade do “legível” para o sujeito-leitor, na formação
dos “pré-construídos” (o repetível) de que sua leitura se apropria. Esse
repetível preexiste à situação de enunciação e o sujeito desta, ao produzir
linguagem, se apodera dele e intervém no repetível.
Formação discursiva, pré-construído e referencialidade
No
espaço do repetível memória e esquecimento se misturam. A ambigüidade, no nível
do discurso, é a que se dá entre o polissêmico e a paráfrase, entre a
concretude do corpo e o formalismo do sistema. Que mantém entre si a mesma
relação tensa e necessária de constituição. Memória e esquecimento estão
emaranhados. E isso é visto pelos analistas de discurso como uma necessidade,
que tem sua razão na observação de uma trajetória pela espessura estratificada
do discurso em suas possíveis transformações.
Sujeito, memória, sentido
A
relação entre enunciado e enunciação está na base de processos discursivos e
que estão ligados à ilusão do sujeito (Pêcheux, 1975). Essa ilusão se realiza
por dois esquecimentos: a) o de que o discurso não nasce no sujeito, por isso,
os sentidos não se originam nele, são retomados por ele; b) o de que ao longo
do seu dizer se formam famílias parafrásticas com aquilo que ele poderia dizer,
mas vai rejeitando para o não-dito, e que também constitui o seu dizer
(enquanto margens).
Do
primeiro se origina a ilusão do sujeito ser fonte de seu discurso, e do segundo
se origina a ilusão da realidade de seu pensamento. No primeiro se inscreve a
eficácia do assujeitamento, no segundo, a estabilidade referencial.
a. Formação discursiva e constituição
do sentido
As
formações discursivas representam, na ordem do discurso, as formações
ideológicas que lhes correspondem. Segundo Pêcheux (1975) “o sentido de uma
palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc. não existe em si mesmo, mas
é determinado pelas posições ideológicas postas em jogo no processo
social-histórico em que as palavras, expressões e proposições são produzidas”.
A
formação discursiva define as condições de exercício da função enunciativa. Na
formação discursiva é que se constitui o domínio do saber que funciona como um
princípio de aceitabilidade discursiva para um conjunto de formulações e como
principio de exclusão do não-formulável. Ela é uma unidade dividida, uma
heterogeneidade em relação a si mesma. Há um deslocamento contínuo em suas
fronteiras, em função das jogadas da luta ideológica, dos confrontos
político-sociais.
Há
as condições de produção de um enunciado e as condições de formação na formação
discursiva específica em que se inscreve o enunciado.
Da
articulação entre as condições de produção com as condições de formação é que
deriva o domínio de memória da seqüência discursiva. A partir do domínio de
memória é que se pode entender os efeitos que são produzidos numa seqüência
discursiva. É nesse domínio que podemos observar a pluralidade contraditória
das seqüências discursivas.
Por
aí se pode ver que a relação com a ideologia não é homogênea. Como também não o
é nem o sujeito, nem os sentidos.
b. Formação discursiva e repetível
Consideremos
que a relação entre enunciado e enunciação corresponde a duas dimensões
constitutivas de discurso: à enunciação corresponde a sua horizontalidade,
enquanto que o enunciado dimensiona o discurso na verticalidade (interdiscurso).
É
à verticalidade do discurso que se pode atribuir o domínio do repetível, onde
se trama a constituição do dizer (exterior ao sujeito).
Na
dimensão horizontal se tem formulação discursiva, isto é, a produção da
seqüência lingüística especifica (sujeito intervém).
Toda
caracterização em termo de funcionamento ou efeitos discursivos engaja assim
uma relação do enunciado (o repetível) com a formulação (a enunciação).
Dessa relação se produz a realidade do discurso: sua historicidade.
Desse
modo é que o repetível se instala como uma das dimensões da historicidade, da
relação com a formação discursiva e com o seu domínio de saber: o enunciável. O
repetível é uma sistematicidade do discurso que é histórica.
É
na relação como a memória, enquanto espaço de recorrência das formulações na
relação com a ideologia, que os objetos do discurso adquirem sua estabilidade
referencial.
Os
objetos de discurso adquirem sua estabilidade referencial pelo repetível. O
interdiscurso fornece os objetos do discurso de que a enunciação se sustenta e
organiza o ajuste enunciativo que constitui a formulação pelo sujeito.
Esse
ajuste acaba por desaparecer aos olhos de quem enuncia, garantindo, na aparição
de um eu – aqui – agora, a eficácia do assujeitamento: o sujeito tem a ilusão
de ser a origem do que diz.
Aí
está a interpelação do indivíduo pela ideologia, aí está constituída a
forma-sujeito com sua autonomia, sua responsabilidade e sua determinação pela
exterioridade. E aí está nosso sujeito-leitor.
O
sujeito-leitor representa a conjunção de duas historicidades: a história de
suas (do leitor) leituras e a história de leituras do texto, que atuam na
constituição de uma “sua” leitura específica.
Os
sentidos são muitos, mas há sempre um enunciável – um legível – exterior e
preexistente, e é a partir dele que cada um pode intervir.
Uma metáfora visual: texto e percepção
O texto
não é uma unidade homogênea. Na perspectiva da análise de discurso, o texto
pode ser considerado como dispersão do sujeito. Há uma pluralidade possível de
leituras e uma heterogeneidade da relação do leitor como os sentidos. A nossa
percepção não é fixa, não se faz de um lugar só.
Fazendo
algumas considerações teríamos que todo texto em relação à leitura teria vários
pontos de entrada e vários pontos de fuga. Os pontos de entrada corresponderiam
a múltiplas posições do sujeito. Os pontos de fuga são as diferentes
perspectivas de atribuição de sentidos: ao relacionar-se com os vários pontos
de entrada, o leitor pode produzir leituras que se encaminham em várias
direções.
Os
pontos de entrada são efeitos da relação do sujeito-leitor com a historicidade
do texto. Os pontos de fuga são o percurso da historicidade do leitor, em
relação ao texto.
Considerando
a relação entre pontos de entrada e pontos de fuga podemos dizer que os
sentidos não caminham em linha reta, mas sim para muitas e diversas direções.
Ao mesmo tempo. De forma dispersa.
Paralelamente
à não homogeneidade do texto há a dispersão do sujeito-leitor. A relação entre
o sujeito-leitor e o texto passa por determinações de muitas e variadas
espécies que são a sua experiência de linguagem. Da mesma forma, a
historicidade do texto e a do leitor se entrecruzam de várias maneiras no
processo de leitura. Os pontos de entrada e de fuga não existem
independentemente dessa relação.
Conclusão: a forma-sujeito e a compreensão
A. Três relações do sujeito com a significação
A partir
do exposto podemos distinguir entre o inteligível, o interpretável e o
compreensível. Temos assim:
a) o inteligível: a que se atribui sentido
atomizadamente (codificação);
b) o interpretável: a que se atribui sentido
levando-se em contra o contexto lingüístico (coesão);
c) o compreensível: é a atribuição de sentidos
considerando o processo de significação no contexto de situação, colocando-se
em relação enunciado/enunciação.
A
compreensão se instaura no reconhecimento de que o sentido é
sócio-historicamente determinado e está ligado à forma-sujeito que, por sua
vez, se constitui pela sua relação com a formação discursiva. Através desse
reconhecimento, se pode atingir a produção do efeito de estabilidade referencial,
produzido pelo interdiscurso.
No nível
da compreensão é que é possível apreender o fato de que o domínio de saber de
qualquer formação discursiva está articulado com o domínio da enunciação,
podendo-se assim, mostrar que sujeito e formação discursiva se relacionam
contraditoriamente.
Compreender
é refletir sobre a função do efeito do eu-aqui-agora, que é a instância das
formulações (horizontalidade), em sua necessária relação com a
constituição (verticalidade) dos sentidos, esclarecendo que estes são
fundamentalmente contraditórios, ou políticos.
Compreender
é saber que o sentido poderia ser outro.
Enquanto
interprete, o leitor apenas reproduz o que já está lá produzido. Para chegar à
compreensão não basta interpretar, é preciso ir ao contexto de situação. Ao
fazê-lo o leitor cumpre sua função social.
Ter
acesso à compreensão é atingir (desconstruir) a relação
enunciação/enunciado, formulação/constituição do sentido. O sujeito que produz
uma leitura a partir de sua posição, interpreta. O sujeito-leitor que se
relaciona criticamente com sua posição, compreende. No seu trato usual com a
linguagem, o sujeito apreende o inteligível, e se constitui em intérprete.
Não há
compreensão sem historicidade. E isto está de acordo com a afirmação da análise
de discurso de que a textualidade é histórica.
B. A interpretação: hermenêutica e análise de discurso
A
análise de discurso não se constitui em hermenêutica na relação com o texto. Na
hermenêutica se visa uma forma de interpretação. A análise de discurso não é um
método de interpretação.
Podemos
dizer, que a análise de discurso visa a compreensão na mesma medida em que visa
explicitar a história dos processos de significação, para atingir mecanismos de
sua produção.
BIBLIOGRAFIA
ORLANDI, Eni P. O inteligível, o interpretável e o compreensível. In:
ZILBERMAN, R. & SILVA, E. T. da. (org). Leitura, perspectivas
interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988. p. 5877.
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